Caio Bulla nasceu em 1991, em Maringá-PR. Graduado em Direito, é servidor público na cidade de Palmas. Lançou o livro de estreia, afiado, asfixiado, aficionado, pela Editora Folheando. Tem poemas publicados no blog Poesia na Alma, no portal Mirada Janela Cultural e nas revistas Sucuru e Variações.
tenho um apêndice
que rejeita o mel
que rejeita todas as
possibilidades do mel
e do leite
sinto o cheiro da sua
permanência as camadas
de suor novas cutes que se
sedimentam talhadas no
fogo lento
lento fogo
com uma mão atrelada
ao passado e a outra ao
futuro não é possível
recolher o cigarro que caiu
no chão as moedas que
rolaram ladeira abaixo
não é possível morder
o próprio rabo e provar a
dor apenas a decepção da falta de
dor
porque a dor faz o apêndice ser
real faz o corpo em volta do
apêndice ser
real e a falta de
dor é uma dúvida ainda
pior
um dano estético como
uma trituração uma
queimadura uma
amputação causa de
dores fantasmas
e ficará gravada no
rosto como
cicatriz de
uma doença
virulenta
o melhor seria expurgar a
terra de todo o
mel de todo o
leite e matar a sede
com o que estivesse
à mão água da
chuva da caixa
d’água do vaso
sanitário da bica
de nossas imprecisões
ㅤㅤㅤ a espera é deriva
ㅤㅤㅤ do agora
ágora
ㅤㅤㅤ vazia
restos para coleta
ㅤㅤㅤ ㅤㅤㅤ ímã de outrosㅤㅤㅤ restos
ㅤㅤㅤ vapor
ㅤㅤㅤ de ideias
ㅤㅤㅤ frio
ㅤㅤㅤ caligem
ㅤㅤㅤ vislumbre
ㅤㅤㅤ a espera é carretel
ㅤㅤㅤ de seda
sede
ㅤㅤㅤ seca
ㅤㅤㅤ sulco
ㅤㅤㅤ contrassenso
ㅤㅤㅤ quanto maior
ㅤㅤㅤ maior
ㅤㅤㅤ o despreparo
ㅤㅤㅤ constrangimento
ㅤㅤㅤ quem dera
ㅤㅤㅤ se soubesse
ㅤㅤㅤ os segredos
ㅤㅤㅤ do ser príncipe
mesmo nus de todas as certezas
seria o mundo à espera da possível realeza
corpos
já não comportam
seu conteúdo
cheios de nada
um pouco de tudo
o pior de nossos possíveis derrames
é sequer deixar sequelas
em nossos vasilhames
em nossas meias-tigelas
depois do balão gástrico
para ocupar espaço de nosso alimento
mostrou-se prático
o uso de arremedos da realidade
como balões cefálicos
para evitar os embaraços do pensamento
a supremacia tática do vazio
no nosso fastio de compartimento
eu como caça
peso a massa
que me preda
eu como caça
teso a massa
que me pedra
eu como caça
farejo o perigo
sinto o beijo
do amigo que
me maxila
do vizinho que
me exila
do parente que
me desfilia
eu como caça
corro da massa
que me acossa
eu como caça
sem casamata
que me possa
eu como caça
morro da massa
que me mata
eu como caça
carneada
quem sabe
retome a humanidade
na próxima temporada
moro com os cães
onde nem os cães
pretendiam morar
oram as minhas mães
porque só podem orar
pais nossos
oram as mães dos cães
porque não podem roer
mais ossos
moro com os cães
no óxido da pick-up
abandono sem escape
nosso teto
nosso tétano
nosso thánatos
feto do monóxido de carbono
cujo aborto por extenso
me fez morto lato sensu
volto ao germe
nos seus olhos ou narinas
quando o perfume da carnificina
impregna sua derme
ou quando
a vacina de raiva
é uma dádiva
porque na minha vida
e na dos meus cães
nem só nos pães
são as mordidas
Foto de Luísa Machado.